sexta-feira, 10 de agosto de 2012

QUILOMBO E MATRIARCADO - RAINHA NGOLA NA REGIÃO AMAZÔNICA

Os estudos sobre o matriarcado deveriam pautar a historiografia brasileira, mas o poder patriarcal e androcêntrico nos estudos acadêmicos cerceam e omitem o matriarcalismo nas reconstruções de sociedades africanas no Brasil.

Quando falamos em quilombo, mocambo, cafundó, terra de preto e outras designações pelos quais os estudiosos adjetivam a resistência dos escravizados através da fuga e da formação de aldeamentos, é deveras importante entender a questão de poder e as relações sociais capazes de permitir por séculos que estas experiências se tornassem viáveis até os dias atuais.

O matriarcado esteve presente em todas as migrações voluntárias dos africanos pelo planeta. Trazida com os prisioneiros (as) das guerras travadas em Mãe áfrica (sociedades matriarcais) pelos cristãos europeus (sociedades patriarcais), esse modelo de organização será o tema que discutiremos em breve.

Os bantus (“humanos”, na linguagem do Congo) que falam cerca de quatrocentos idiomas e habitam do oeste para leste o Gabão, Camarões e norte ao sul do Sudão até a Namíbia. Os vários grupos étnicos Bantus dominaram a metalurgia do ouro e do ferro, usando este último, produziram machados, espadas, enxadas e enxós. Além disso, as habitações têm uma arquitetura particular de cabanas circulares ou aldeias chamadas de Msonge. Tais avanços permitiram a colonização de seus territórios ao longo de um período de cerca de quatro mil anos. Muitos grupos étnicos bantus foram sequestrados para as Américas e trouxeram consigo as suas experiências matriarcais.

No seu último livro, que não viu impresso, Décio Freitas visitou uma das menos conhecidas revoltas populares da história brasileira, o movimento que nos livros escolares aprendemos com o nome de Cabanagem. Dizendo em palavras vagas, foi uma insurreição ocorrida principalmente em Belém, entre 1835 e 1840, e reprimida sangrentamente – teriam morrido no total umas 30 mil pessoas, cerca de 25% da população do Pará na época. Foi designada com esse nome por motivos triviais: é que de fato a maior parte dos envolvidos vivia em cabanas pobres, em malocas improvisadas, numa vida miserável que foi, sem dúvida, o combustível da revolta.
No livro A Miserável Revolução das Classes Infames, Freitas relata sobre a existência de um quilombo matriarcal na floresta amazônica, liderado pela rainha NGola e outras guerreiras, informação obtida após a tradução de cartas de Jean-Jacques Berthier, um francês que aos 14 anos de idade teve que fugir da França para Guiana Francesa após ser assediado por um pedófilo que o condenou na Revolução francesa.

Fugindo das batalhas que assolaram o país depois da independência, ele foi parar num desses mocambos matriarcais – justamente o da rainha Ngola – e viveu lá entre 1824 e 1828. Sua carta enviada ao irmão Guillaume, em Nantes, na França, foi pesquisada pelo historiador Décio Freitas para o livro A Miserável Revolução das Classes Infames e mostra com riqueza de detalhes como era a vida nesse pedaço da África em plena floresta amazônica.

Berthier informa que eram quatro quilombos adjacentes com 300 moradores em cada um deles e um principal com uma média de 700 moradores, sendo um total de 1900 habitantes. Assevera de que o quilombo principal já tinha cinquenta anos de existência e a rainha que governava já era a terceira Ngola. Um detalhe chama a atenção da descrição da rainha. ela estava em uma cadeira de espaldar alto colocada em uma plataforma, via-se na altura do espaldar uma serpente de ouro encastoada.

No decorrer do relato sobre os mocambos o poder da rainha é demonstrado com castigos impostos aos homens que só podia conversar com ela prostados de joelhos, e quando falavam algo não consensual eram castigados com até três bastonadas na cabeça. Berthier ao ser recebido para solicitar asilo não se prostou sendo imediatamente castigado, e aprendeu a lição de respeito ao matriarcado, recebendo também uma bastonada e prostou-se. Asilo aceito e algumas condições foram expostos:

- Poderia viver na comunidade como irmão, mas, não era permitido relações sexuais com as mulheres pretas, nem se pagasse o dote. O motivo apresentado pela rainha era porque as mulheres eram poucas e necessárias para a reprodução da raça preta sem mistura de sangue branco ou indígena. Mas, poderia casar com uma mulher nativa e tornaria capitão das milícias nas lutas contra os brancos que não permitiam a liberdade dos pretos e eram pérfidos. 

Interessante são os relatos do francês sobre o poder matriarcal que o deixou embasbacado

A RELAÇÃO CONJUGAL POLIANDRICA

As mulheres escolhiam os companheiros e eles passavam pelo teste da convivência por alguns meses, só assim ela analisava se ele era satisfatório. Se por acaso fosse aprovado tinha que pagar um dote requisitado pela noiva e ela declarava a todos da aldeia que ele era a partir daquele momento o seu marido. As mulheres podiam ter até cinco maridos, robustos e ágeis, escolhendo qual deles ela manteria relações sexuais e os mandava embora no momento que assim entendessem. Os maridos moravam em suas próprias cabanas e elas escolhiam entre eles um que era o responsável de supervisionar a família que poderia ter 20 filhos, este “privilegiado” morava em sua cabana. Outra atribuição masculina era carregar a esposa nas costas, quando ela não queria andar a pé.

Em Moçambique, existem ainda sociedades matriarcais e poliandricas, onde as mulheres têm voz mais ativa e poder. Estas sociedades remanescentes encontram-se no norte de Moçambique. Um amigo relatou que encontrou uma mulher que teve um marido, filhos e depois o deixou, e ela encontrou outro e outro e voltou a relacionar-se com o primeiro e tem um outro que vive em casa. Eles se coordenam e visitam aquela mulher sem conflitos com o atual, aquele que vive em casa é o atual marido, enquanto os outros são SOBRESSALENTES, como elas chamam.

ECONOMIA

A economia da comunidade baseava-se no trabalho masculino na agricultura, caça, pesca, tecelagem, olaria, serralheria, extrativismo e mineração de ouro vigiados por guerreiros da rainha. O ouro era utilizado para confecção de joias para a rainha e o restante para conseguir armas. Realizavam também trocas de gêneros com holandeses da Guiana. também vendiam tabaco e mandioca para as populações ribeirinhas e praticavam a pirataria: os soldados de Ngola atacavam canoas em rios distantes, roubando os viajantes – ou então saqueavam povoações de brancos.

FORÇA DE DEFESAEra composta de guerreiros de cabeça raspada e não trabalhavam para a suas esposas e tinham o privilegio de obedecer somente à rainha Ngola. Constantemente realizavam ataques de guerrilhas a povoações dos brancos para o saque.

RELIGIÃOMantinham as práticas das religiões ancestrais e conforme relato do Frances:

"Reverenciam ídolos com feições de homens, mulheres e feras, aos quais periodicamente fazem sacrifícios. Qualquer celebração religiosa deve ser autorizada pelo feiticeiro, que é também o curandeiro em suas doenças." 


Notamos um desconhecimento completo da metafísica religiosa bantu por Berthier, embasado de preconceitos cristãos sobre o que não entendia.

LAZER
Dança e música usando os instrumentos “pungo” e marimba. O missivista demonstra perplexidade com as mulheres que passavam o tempo sentadas no chão conversando, cantando e fumando tabaco.

O machismo de Berthier não entendia o matriarcalismoe na sua visão androcentrica as mulheres deveriam servir aos homens.

EDUCAÇÃOA oralidade através de contadores de histórias.

Relata Freitas: "É uma pena que Berthier não se alongue mais na narrativa sobre a sua experiência no mocambo. Seria nada menos que sensacional se desse mais informações sobre aquela sociedade poliândrica, semelhante à de Palmares e às de algumas regiões da África. Mas não indica sequer aproximadamente a localização geográfica do mocambo, embora certas referências permitam supor uma região para os lados da Guiana Francesa.
O laconismo talvez se deva ao fato de ter jurado, com sangue, perante a rainha Ngola, guardar rigoroso segredo sobre o mocambo."


Concluo este artigo citando um provérbio que com certeza se aplicou a Berthier:

"O olho nunca se esquece do que o coração vê."
Provérbio bantu.


Fonte: http://cnncba.blogspot.com.br

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